terça-feira, 24 de janeiro de 2017

"Do lado do silêncio"

  "Porque há sempre uma porta que se fecha e nos separa, ao contrário da casa, onde a porta do teu quarto e a do meu estão sempre abertas. Há sempre esta porta que se fecha sobre ti, outros que falam e te escutam, enquanto eu caminho na tua ausência e na lembrança da tua voz, outros que sabem de ti o que ignoro, outros que por vezes se cansam de ti enquanto eu só te espero, outros que te vêem e te tocam enquanto eu olho as tuas fotografias espalhadas pela minha vida. Tão perto e tão longe de ti. Tão fundo e tão ausente. Tantas esperanças, tantos projectos, tantos planos. Tantos enganos. Tantos anos, tantos danos.
 Fecho os olhos e sonho. Tu caminhas comigo, de mão dada, num campo onde não há mais ninguém, e procuramos musgo e pinhas. Há uma gruta num pequeno bosque de que eu finjo não conseguir encontrar a entrada sem ti. É o nosso segredo e lá estamos protegidos do mundo e dos seus males e perigos. Entro por aí contigo. Adormeço e para sempre viverei contigo nesta gruta. E és tu então que me proteges.

(A todos os pais que não se demitiram de o ser e que gostariam de acordar todas as manhãs com os seus filhos e vê-los adormecer todas as noites e não podem. A todos os macho-homem, vagueando por casas vazias sem ninguém a quem guardar, sem ninguém a quem proteger, sem função útil, nestes tempos em que não há tempo a perder.  E escrito em mais um Dia Internacional da Mulher, com o seu coro de lamentações e homenagens à mulher e «à sua tripla função de mãe-trabalhadora-dona-de-casa» face à cada vez mais evidente inutilidade social dos homens).

in "não te deixarei morrer, David Crockett" de Miguel Sousa Tavares

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